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sábado, 24 de dezembro de 2011

O Poder da Oração

Um comentário ao opúsculo de Alexis Carrell, "O Poder da Oração", para prefaciar um livro.

Doce virgem! Respondeste às minhas dúvidas com um milagre esmagador. Não sei compreendê-lo e duvido ainda, mas o meu maior desejo, a finalidade última da minha vida, é crer.
Recolhido de Alexis Carrell

Foi neste registo que os prosélitos do Estado Novo me deram a conhecer Alexis Carrell, incensado pela Igreja Católica e pela Mocidade Portuguesa, omnipresentes na minha juventude. Tendo reagido cedo a essa “cultura”, também esse meu ídolo desabaria dos altares: o investigador controverso que começara por desafiar a Criação e acabara adversário da ciência; o filósofo ateu que não resistira a um apelo religioso serôdio; o humanista e sociólogo fascinado por algumas teses do nazismo; e, sobretudo, o livre-pensador que, consumido numa transcendência não demonstrada, convivera com o holocausto.
Só depois de removidos escombros da Fé e do Império, que durante muito tempo ensombraram o meu espírito, consegui ver longe e admitir o óbvio: que Carrell é um marco incontornável da cultura universal… alguém que, na sua incessante busca da verdade e do desconhecido, conseguiu abrir novas fronteiras a toda a Humanidade. É certo que na recta final da sua vida, mais próximo de Pascal do que de Descartes, se perdeu no quarto escuro que foi a ocupação nazi: à deriva entre a razão e as emoções, ter-se-á esquecido de Freud que nos ensinou que a mente humana é uma criança atrevida e assustada, presa fácil de anjos e demónios. Mas não foi com Carrell que aprendemos que a Humanidade evolui facilmente em tecnologia, mas não intelectualmente, desfasamento que tende a degenerar a sua própria essência? E que se o Homem não for à procura de si próprio, se afastará do Mundo e cairá no abismo, um dos grandes paradoxos do mundo actual?
Arauto da sintonia entre o Homem e o Universo, um tema central nas civilizações orientais, Alexis Carrell teve a “coragem” de nos propor a oração como uma espécie de fármaco de excepção, uma alavanca entre Deus e o estranho coração dos homens, capaz de produzir milagres. Tratou-se de uma peregrinação pelo fantástico, mas desta sua nova tentativa de explorar os segredos do mundo conseguimos extrair duas lições: que o Homem e a comunidade científica não devem fechar nenhuma hipótese, por mais bizarra que se afigure; e que qualquer fé pode quebrar o desespero e a solidão, tornando-se num gerador de harmonia e paz interior, e de confiança, adjuvante terapêutico não negligenciável em muitos actos médicos.
Ao chamar a atenção para a necessidade de se olhar a Medicina para lá da Medicina, Carrell marcou fortemente o meu percurso humanista. Tenho, contudo, que as estrelas nos transcendem e que as areias nos tocam, que não é apelando a poderes celestiais, mas sim através de um melhor conhecimento humano, que podemos libertar a “energia” capaz de conduzir a “curas miraculosas”. Pois não é verdade que a Medicina pode sair reforçada, se existir o cuidado de se esbaterem as divergências que nunca cessam de borbulhar na mente dos homens?
Acreditando que podia captar alguma dessa “energia” terrena, desprezada, nos anos oitenta resolvi inaugurar uma tendência hoje em voga: inquirir os utentes e seus familiares sobre o acerto dos serviços prestados, à procura de focos de tensão que pudessem perturbar a sua “paz interior” e que interferissem com o nosso desempenho profissional. As informações que retirei dessa pesquisa foram notáveis, tendo “sido obrigado” a rever algumas práticas, sobretudo nas áreas do Atendimento e Relações Públicas. Alterações que logo se reflectiram no ajuste de muitos comportamentos reactivos, numa atitude mais positiva face à doença e seu tratamento, numa melhor aceitação das prescrições e numa evolução notável dos resultados clínicos. Se quisermos ir por aí… encontrámos uma nova alavanca capaz de “verdadeiros milagres”.
Não há sensor que possa medir esta estranha força, encerrada no coração dos seres humanos. E, no entanto, como ela é real, e eficaz, e como tantas vezes determina um novo olhar para o nosso semelhante e a quebra das nossas rotinas. Quantas vezes um médico não tem de “perder um minuto”, e de retocar uma história clínica ou alterar uma prescrição, ao reparar num sobrolho que se crispa, nuns lábios que se estreitam ou na sombra que lê no rosto do seu paciente? Quantas vezes a mão que estende não se revela muito mais eficaz do que a última novidade terapêutica? E quantas vezes não “vê” o céu de Alexis Carrell e a terra mais chã, unidos na perfeição, a girarem em perfeita sincronia? Pois não era Miguel Torga quem dizia que “é pouco sábio o médico que só sabe de Medicina”?

Bom Natal e um forte abraço do
Cândido Ferreira

4 Comentários:

Blogger RI-RI disse...

Gostei! Um grande abraço e Festas Felizes!

2:29 da tarde  
Blogger Manuela Curado disse...

Foi com sensação generalizada de bem-estar que acabei a leitura deste artigo.
Mais uma vez o respeito inicial que tive por este homem se mantem inálterável.
Fico feliz pelas suas palavras e por desta vez não serem goradas as minhas espectativas.

Obrigada , Candido, por esta boa lição sobre o real valor do COMPORTAMENTO HUMANO.

Sinto-me honrada com os momentos de amizade que contigo passei.

Para ti e tua "menina", o desejo de PAZ e AMOR

8:55 da manhã  
Blogger Manuel Cruz disse...

Carrell já tinha sido contemplado, ao que julgo, com o Nobel da Medicina, quando aceitou o desafio de Pétain para integrar o Corpo Médico do Exército Francês na Grande Guerra.
Daí terá vindo a sua ligação ao governo de Vichy, por amizade com o marechal herói da 1ª guerra mundial. Neste ambiente, de cedência em cedência, aconteceu aquilo que é a fase negra da sua vida.
Pior do que tudo isto será o facto de o fascistas portugueses o terem usado desta forma que agora revela e que eu desconhecia. O fascismo luso era tristemente pior que os seus congéneres por ter como valores supremos a bota e a batina e um desprezo total pela inteligência local, o que o obrigava a ter de recorrer à importação de exemplos destas.

6:26 da tarde  
Blogger Manuel Cruz disse...

Carrell já tinha sido contemplado, ao que julgo, com o Nobel da Medicina, quando aceitou o desafio de Pétain para integrar o Corpo Médico do Exército Francês na Grande Guerra.
Daí terá vindo a sua ligação ao governo de Vichy, por amizade com o marechal herói da 1ª guerra mundial. Neste ambiente, de cedência em cedência, aconteceu aquilo que é a fase negra da sua vida.
Pior do que tudo isto será o facto de o fascistas portugueses o terem usado desta forma que agora revela e que eu desconhecia. O fascismo luso era tristemente pior que os seus congéneres por ter como valores supremos a bota e a batina e um desprezo total pela inteligência local, o que o obrigava a ter de recorrer à importação de exemplos destas.

6:26 da tarde  

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