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segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O machacaz

Desde que me conheço que ajudo mulheres a parir, gritava a ti’Maria Rita lá do quarto dos fundos, mas esta está a dar-me água pela barba.
Tragam-me mais uma panela de água quente e umas toalhas para ver se a criança dá a volta completa e se se põe a jeito de vir cá para fora.
Enquanto berrava para as ajudantes que, atarantadas e tolhidas de medo, viam a velhota dar palmadas nas “nalgas” da Dionísia que se debatia com o nascimento do seu primeiro filho, a comadre ia aconchegando o ventre da parturiente, atenta a todos os movimentos da criança que parecia estar a orientar-se para a chegada a este mundo.
Abram o raio dessa janela que nos falta o ar aqui dentro.
E tu mulher, enche-te de coragem e morde, com quanta força puderes, essa toalha que tens na boca.
Vai custar mais um bocado, mas nunca nenhum me ficou lá dentro e vais ver a prenda que já começou a mostrar-me a cabeça.
São mais uns dez minutos; vais ver que mais ou menos ao meio-dia vai berrar aí que nem um desalmado; já que pela configuração e tamanho do que já posso ver me arrisco a dizer que é macho.
E assim foi: ainda o relógio não acabara de bater as doze badaladas e já um rapagão berrava com todas as forças, nas mãos da velhota que começava a limpá-lo e se preparava para tratar-lhe do cordão e colocá-lo, na cama, ao lado da mãe.
Parabéns rapariga, tens aqui um belo rapaz.Mas olha que o machacaz deu-nos bem que fazer: a ti e a mim, que desde que me recordo foi dos mais difíceis. Estava lá bem, o finório. Não lhe faltava nada e sair de lá não parecia agradar-lhe, mas já acabou.
Chico cresceu, avantajado de corpo, meio desajeitado e, aos sete anos, quando entrou na escola, as carteiras da frente, destinadas aos da primeira classe, eram-lhe pequenas.
A Professora mandou sentá-lo na terceira fila e, mesmo assim, ainda era escasso o espaço para as pernas do rapaz.
Com os ombros largos, os braços passando-lhe um pouco abaixo dos joelhos, umas mãos grandes e a cabeça, meio disforme, mas grande e bem coberta de cabelos pretos, o Chico conseguiu fazer o exame da terceira classe, a custo.
Depois começou a guardar as cabras e ovelhas e a ajudar os pais nas lides do campo.
As tentativas de aprender as artes de carpinteiro e pedreiro, não resultaram.
Homem de poucas falas e olhar esquivo, tinha aversão às botas e raramente apertava todos os botões de calças e camisas.
Apurado de instintos, cuidava do que era seu e com a fisga nas mãos, armando costelas e boízes, no tempo delas, ou mesmo à unha, nunca se lhe acabava, em casa, caça, peixes e outros petiscos.
Saía sozinho, a todas as horas do dia e da noite, nunca mostrara medo, fosse do que fosse, e era encontrado onde menos se esperava.
Tinha um tratamento muito familiar com toda a bicharada e se pressentia alguém, no seu caminho, desviava-se para evitar encontros e conversas de que era pouco amigo.
Alguém reparou na expressão da comadre Maria Rita, ao dizer para a Dionísia que o “machacaz” lhes deu bem que fazer e, como nada cai em saco roto, foi-se generalizando a alcunha e quando o rapaz foi às sortes era, para todos, o “Machacaz”.
Ficou livre do serviço.
Um corpanzil daqueles, podia e devia alombar a servir a pátria. Mas, assim não acharam os entendidos e o Chico nada se incomodou, como se não incomodaria se o mandassem ir para algum lado.
Até aí catrapiscava a garota do ti’Cambado, do mesmo ano que ele, magricela, de poucas cores e olhitos azulados, herdados da mãe, que não resistiu ao parto e deixou órfã e viúvo lá na casa da ladeira, onde sempre viveram, só os dois.A dispensa da tropa veio apressar as coisas e notaram, os mais observadores, que o Machacaz, à medida que se aproximava o casamento, ia mais pela taberna, chegava-se mais às conversas e tomava muita atenção a tudo o que dissesse respeito a relações entre homens e mulheres.
Começou a frequentar mais a missa dos domingos, tratou de tudo e ajudou na construção da casa nova, ao lado dos cómodos da ladeira.
A boda foi discreta e muito farta e, apesar do espírito reservado do Machacaz, todos ficaram admirados com a maneira como tratou todos os convidados e a forma como parecia outro homem.
Vieram três filhos, nos três primeiros anos e, depois, voltou a ser o mesmo Machacaz de sempre; sorumbático, esquivo e isolado.
Algum tempo depois começou a frequentar assiduamente a taberna, a beber até cair e a falar consigo próprio.
Os mais chegados metiam-se com ele. Porém, além de reagir mal, começou a mostrar sinais de agressividade e falta de tolerância, nas brincadeiras.
Um dia, ao ouvir as prosas do Longueiras, saiu abruptamente da taberna, dirigindo-se a casa, com passada aberta e rápida e, entrando no quarto, sorrateiramente, viu, nos fundos da cama, por baixo da coberta, os vultos de quatro pés.
Saiu, caminhou rapidamente até à taberna, onde bebeu, de enfiada, dois ou três copos de vinho.
De repente e inopinadamente, enfrentou os presentes e exclamou:Estão lá quatro pés, sim senhor, mas dois são do Machacaz!...


José Marques Valente



in "Histórias de gente simples"

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