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sexta-feira, 25 de julho de 2008

HABITADOS PELO MEDO

Fomos educados com base em princípios simples. Por exemplo, o dualismo cartesiano que nos leva a classificar tudo em duas classes: preto branco belo feio céu inferno tinto branco. Os matemáticos como são esquisitos até deram um nome à coisa: princípio do terceiro excluído: ou se é ou se não é mas nunca ambos. Mas a vida essa nossa casa passageira está constantemente a desmentir este princípio da divisão dicotómica. Pensemos num remédio. Numa óptima reducionista ele ou é bom ou é mau. Mas todos sabemos que ele pode ser simultaneamente bom e mau. São os famosos efeitos secundários, que os militares apelidam de danos colaterais. Um tipo toma um antibiótico por causa de uma extracção dentária e fica de diarreia. Há mesmo quem diga que um remédio que não faça nada já é bom. Tipo placebo! Mas há falsas oposições, digamos subtilezas, de que não nos apercebemos de modo consciente, nem física nem metafisicamente. Mas coabitam em nós.
...
O Joaquim Alberto Castanheira Melo morou na Rua do Volta Atrás mesmo em frente do Ni Bomba. Isto significa que morava mesmo ao lado da Escola Primária. Com a sua voz tonitruante o professor Alberto Martins deu ao Melo uma razão de peso para não ir à escola: bastava andar por perto para ouvir a lição. Foi guarda redes do União, mas também da Académica, Sporting, Guimarães e Estrela da Amadora. Até venceu uma taça de Portugal. O medo era uma palavra ignorada pelo Melo. Nos tempos dos torneios de futebol se salão do Centro era vê-lo no papel de guarda-redes dos Fantomas, atirando-se para o cimento como eu não me atirava para a areia da praia. Nessa equipa, que tudo ganhava, graças à famosa táctica do carrossel mágico, tínhamos ainda o Faztudo, meu irmão, o Dias, o Couceiro, o Jorge do Café e o Simões (também conhecido por Fonsequinha e que foi campeão nacional pelo Porto). Coitados dos Strongylocentrotus com as suas camisolas laranjas. Bem tentaram... Resumindo: o Melo não tinha medo. Mas não era só futebolista conceituado. Também participava em todos os nossos jogos inocentes. Bem, não exactamente em todos, pois a primeira vez que jogou à Estrelinha Cai-Cai disse que nunca mais. Vá lá saber-se porquê! Então que jogos? Educativos, sim, educativos porque a Escola não nos ensinava tudo e nós tínhamos um apetite insaciável pelo conhecimento. Vejamos um exemplo simples.

Hoje estamos sempre a assistir a simulacros de incêndios, de salvamento de reféns e de outras calamidades, naturais ou não. É para quando for mesmo preciso estar tudo preparado. Dizem. A trupe “Ferrão, Dias e Companhia”, de que o Melo era um ilustre membro, sempre à frente no tempo, desde muito cedo quis contribuir para testar certos equipamentos cruciais para o aumento da esperança de vida dos portugueses. Que equipamentos? Os telefones! Não aqueles pretos com uma pega atada por um fio a uma base que tinha sensivelmente a meio uma girante roda com dez buracos onde se podiam ver de modo ordenado os dez dígitos, de zero a nove. Não, esses estavam mais que testados e eram fiáveis. A nossa dúvida estava na eficácia dos telefones públicos. Havia um no nosso Bairro mesmo em frente do Centro, do lado do Samambaia. Tinha uma porta tipo fole e lá dentro um aparelho. Acresce que só funcionava colocando lá dinheiro. Daí que o dito fosse blindado, porque no seu interior se iam acumulando as muitas moedas que os utentes lá tinham que deixar. Desses telefones nós desconfiávamos e como podia estar em causa, repito, a vida de muita gente, toca de testar o seu funcionamento. Como? Bem um de nós cedia uma moeda de um escudo, o que lhe dava direito a fazer uma chamada telefónica para chamar um táxi. Como se tratava de um teste ao funcionamento do telefone e à rapidez da resposta nós pedíamos o táxi para o fundo da Pedro Álvares Cabral no local onde desagua no Largo. Solicitávamos também ao motorista para vir o mais rápido possível pois tratava-se de levar um tio velhinho ao hospital que se estava a sentir muito mal e que apitasse forte pois o velho tio nem com uma corneta colada ao ouvido ouvia. Era a bem dizer quase surdo. Estes pedidos eram feitos de noite, porque é nesse tempo que se testam verdadeiramente todos os aparelhos... A seguir corríamos pela Mouzinho de Albuquerque, virávamos à esquerda entrando pela rua de Moçambique, acelerávamos o passo até ao cimo do Largo e estacionávamos ofegantes escondidos atrás do sobreiro junto à chamada Casa da Aldinha habitáculo dos altos Cortez Vaz. O primeiro resultado do nosso teste não foi famoso, pois se é verdade que o táxi apareceu tocando bem alto a buzina, prova de que a mensagem tinha passado e o sentido do dever do taxista existia, não era menos verdade que nós, indo a pé, chegámos primeiro. E isso era preocupante, muito preocupante. Tivemos pois que repetir o exercício, até para ter resultados estatisticamente significativos. Como se faz nas sondagens. Coube então a vez ao Melo de contribuir com a moeda e fazer a chamada. Entrou na cabina e fechou a porta em fole. Nós do lado de fora olhávamos. E o que vimos? O Melo puxa de um lenço e começa a limpar leeeeenta e cuidadosaaaamente a moeda de um escudo. Olhámos uns para os outros surpresos e perplexos. Como a actividade demorasse o Tó Ferrão impaciente abre a foleira porta e exclama:

-- Ò Melo, o que é que estás a fazer? Ò pá mete lá o raio da moeda e chama o Táxi.
-- Acham que sou parvo, é? O que estou a fazer??? Estou a limpar as impressões digitais da moeda! Assim eles nunca me apanham!!!


O Melo afinal era corajoso mas tinha o pior tipo de medo: aquele cuja razão escapa  a toda a lógica! 

E assim ficou por fazer a prova dos nove sobre a infalibilidade dos modernos meios de comunicação públicos, pois o Melo amuou com a risota geral dos Ferrão, Dias e Companhia e não quis saber de mais nada. Nem a moeda deixou!!

Olhando retrospectivamente vejo um tempo em que nada nos era permitido, ou o pouco que o era tinha quase sempre custos: fosse jogar à bola na Praça dos Baloiços, acender um cigarro num isqueiro, ver o Couraçado Potemkin ou o Último tango em Paris (give me the butter, please!), dar um simples beijo na boca ao ar livre, ter escolas mistas ou simplesmente discordar de qualquer coisa. Quiseram alguns poucos que muitos tivessem muito cuidado com tudo o que diziam ou faziam. Até censurassem o próprio pensamento. Quiseram, e muitas vezes conseguiram, que fôssemos, sem o saber, habitados pelo medo. Durou 48 anos!

Jó-Jó

6 Comentários:

Blogger Rui Pato disse...

Tás a ver, Jó:
Bons textos como o teu já não dispertam comentários...
Ou te tornas anónimo ou escolhes uma figura egípsia para que te leiam e te apreciem...
Os cavalinhos , qualquer dia são minotauros...

10:24 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

Ó JoJo!
Do Melo haverá muito mais que contar!
Lembro-me que o "artista" não podia ver uma janela aberta!!!??
E se houvesse um vaso por perto!!???
E mais não digo!

in "agitador"

1:49 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Pois é!

Quer Queiram quer não queiram,
Alguns Cavalinhos perderam o Norte!
Felizmente não foram todos,
O que já é uma sorte...

Quer queiram quer não queiram,
Este e mais um ou outro texto,
Ainda são o motivo
Pelo qual eu não vos deixo!

Quer queiram quer não queiram,
A opinião do Rui Pato é de ouro!
É preciso não transformar o Cavalinho,
Num monstro fabuloso com corpo de homem e cabeça de touro!(Minotauro)

Saudações
Belinha

3:20 da tarde  
Blogger Ernesto Costa disse...

Caro Agitador.

O Melo tem realmente muitas histórias mais. Como todos nós aliás. A questão é encontrar o justo equilíbrio entre o muito que se sabe e o que se deve contar. Não é fácil, confesso, e no que aqui já escrevi temo nem sempre ter acertado no registo certo.

Rui,

É difícil, num meio ainda mal dominado por todos nós, conseguir manter uma coerência discursiva, o tal equilíbrio. Levo muitos anos de computadores (a minha vida profissional como sabes) e de internet, para saber que sabei muito bem como tudo começa mas nunca saberei como tudo acaba. Sei apenas que a melhor solução é persistir, estando sempre atento aos outros.

Que as rosas continuem bem vermelhas.



Jó-Jó

4:29 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Caro Jó
è sempre com agrado que leio as tuas " estórias " ;tens uma memoria invejavel ... e tens uma maneira peculiar de nos transportar ao passado
Mas,e não me interpretes mal,gosto mais quando não fazes citações " politicas " :))))
Grande abraço e não pares de nos deliciar
CHICO

10:25 da tarde  
Blogger LinoZé disse...

Mesmo fora de tempo, que andei dois dias mais ocupado com outras funções (de avô, p.e.), quero contribuir para este coro de saudações, merecidas e oportunas.

O blog não tem que ser só isto, mas é seguramente melhor se for também isto!

E, quer queiram quer não queiram, pelo menos uma flausina da rua F tem sempre uma palavra sensata!

8:21 da tarde  

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