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domingo, 27 de julho de 2008

CORDÃO UMBILICAL

A Praia da Costa da Caparica. As primeiras férias da família, eu e os meus irmãos. O meu pai, calado, solitário, austero
(diz algo que valha mais do que o silêncio)
a minha mãe o seu complemento. Porque regressamos tantas vezes às memórias? São pedaços de nós desfocados que se agarram como folhas de papel electrizadas depois de friccionadas. Se queremos que nos larguem temos que as agitar com força mas o melhor que conseguimos é transformá-las em sonhos.
...
caminhos. O grande carro preto que emprestavam ao meu pai na Auto-Industrial, sete seres lá dentro mais os dois grandes baús no cimo daquele monstro. A longa viagem de muitas horas com direito a furos e a lanche pelo caminho. Escolher o maior bolo para sentir que está dentro de mim. Uma bola de Berlim
(há com creme ou sem creme!!)
ou uma almofada (também lhe chamavam livro, creio): um paralelepípedo com um sulco descentrado onde se insere um creme branco delicioso. Só fica completo com a cobertura de açúcar branco, muito fino. A ida para a praia de manhã ladeado por casas miniaturas, com quintais, canteiros de flores, habitações permanentes
(dizem-me que é um parque de campismo)
de quem não tem alternativa. O passeio prometido ao Portinho da Arrábida com um almoço-lanche, frugal, religiosamente embrulhado num saco de papel pardo. A camioneta avança devagar serpenteando serra acima escolhendo caminhar pelas entranhas do ralo monte. É belo o mar visto do alto, parece manso, lá em baixo o porto em forma de meia lua, os minúsculos barcos coloridos com nomes de santos. A viagem é o pretexto, o conteúdo do saco de papel pardo o objecto do desejo. Para lá chegar temos que ir a pé.
(larga-me as saias. não são saias, mãe, é a vida)

visões. Federação Nacional para a Alegria no Trabalho. FNAT. Alinhadas as camaratas
(dizem-me que se parecem com as da tropa, cá e lá, na guerra)
edifícios baixos que se prolongam longitudinalmente . Separam-nos, os quatro rapazes numa, apinhados em quatro beliches, a minha irmã, o meu pai e
(larga-me as saias. não são saias, mãe, é a vida)
a minha mãe noutra. Descobrimos a casa central, o palco das diversões. Os meus irmãos fixam-se nos bilhares eu olho hipnotizado para um objecto com aspecto de pessoa, amputada do corpo. Tem uma grande cabeça, transparente. O nariz tem uma única cavidade e uma protuberância que podemos rodar 180 graus. Mais abaixo a boca. Quando o nariz inala uma moeda de um escudo e o torcemos, a boca vomita uma parte do visível cérebro
(dizem-me que são amendoins)
mais parece uma bola de cristal.

cheiros e sons. O mar grita connosco ritmicamente. Avisa-nos dos seus perigos e nós gritamos também para o assustar. A praia, não digo esta pois não há outra, não tem rochas, nem mexilhões, só água. Cheiro novo
(dizem-me que é do iodo)
é grande o mar, podemos perder-nos
(larga-me as saias. não são saias, mãe, é a vida)
ao tomarmos um banho de sal.
Depois do corpo cansado, o almoço na cantina com uma enorme mulher de farto peito a despejar comida, tachos e marmitas de alumínio
(dizem-me que se parecem com as da tropa, cá e lá, na guerra)
em competição ruidosa com as nossas vozes. O cheiro a pinhal sempre se confundiu com o cheiro a férias. A bola de cristal fala-me do Pinhal de Leiria, de S. Pedro de Muel, do Luís Soares. Apanhar pinhões, embalar o sono numa cama de rede presa a dois pinheiros.


sabores. O mar é princípio de novos sabores. Os sacos de celofane contendo lá dentro muito sal e óleo, dando forma a batatas laminadas, batatas fritas. E as bolachas americanas? Aquele cilindro branco enorme que usa um homem todo vestido com a cor da rendição para nos conquistar
(psst! ò faz favor)
a tampa com uma roleta no cimo e números de um a seis. Tudo é possível basta rodar e ... um! Sempre assim. A bola de cristal ainda não me ensinara cálculo de probabilidades, tantos uns e só um seis. Americanas porquê? Porque se chamam assim
(dizem-me que é da América)
estes objectos do desejo?

tacto. A praia é o maior e mais democrático brinquedo do mundo. A areia é só nossa e é de todos. A bola de cristal esqueceu-se de me dizer que há praias com donos. Não se deve mentir às crianças. Será verdade? As mãos são o instrumento total: são formas, pás e ancinhos. A nossa imaginação é o limite.Fazemos e logo desfazemos. A natureza deu-nos tudo o que precisamos. Só falta
(larga-me as saias. não são saias, mãe, é a vida)
brincar com os outros, socializar-me.
...
As memórias são como pastilhas elásticas. Agarram-se a nós ferozmente e não nos largam. Se as agitarmos desesperadamente o melhor que conseguimos é transformá-las em pesadelos. De novo o grande carro preto, agora de luto. Os rituais de despedida. Bastaram cinco dias para passar do tudo ao nada. Sou filho de mim próprio e o antepassado que fui não se lembra disso. A bola de cristal não lhe mostrou. Foi boa e mentiu. O meu pai irremediavelmente calado e austero, a minha mãe agora sua igual. A solidão suspensa por breves instantes. É o fim da viagem.

(a vida larga-me. não, mãe, agarra-te às minhas calças)

As memórias são ...

Jó-Jó

7 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Caro amigo

Dizia hoje na esplanada do Samambaia numa "roda" de amigos onde a tua irmã estava incluída, que és indiscutivelmente um dos "nossos" que melhor "encarna" neste blogue, através dos textos que escreve, aquele que foi o verdadeiro espirito e vivência do nosso Bairro.

A tua infância, a tua adolescência, as tuas férias grandes (que termo pomposo) foram quase fotocópias das minhas e de muitos dos nossos amigos que a vida solidariamente uniu até hoje.

Escreves quase como respiras.
As palavras saem-te soltas, leves e ordenadas.

Gosto de te ler, e gosto de ser teu amigo.

Quero só fazer-te um pedido que não tem nada a ver com este texto.

Recorre a mim, quando quiseres reproduzir histórias do nosso tempo e em que eu tenha estado de alguma forma envolvido.

Ficas garantidamente com a certeza de estares a utilizar "originais".

PS - Nunca os Fantomas teriam categoria, para nos "roubar" o Carlos Simões. Era um "exclusivo" das minhas equipas.

Um abraço

Saudações académicas

Tó Ferrão

8:27 da tarde  
Blogger Jotta Leitao disse...

Caro JóJo!

Lindo lindo...palavras para quê?...conseguiste descrever as tuas 1ªs férias muito bem!
Teus textos são um grito de libertação que também tantas vezes me apetece dar na ansia de liberdade... para saír por aí sem amarras, sem censura, sem preconceitos, sem remorsos, sem satisfações a dar, sem representações, sem máscaras...viver...sentir...sorrir!!!

Resta-me atribuir-te outro 20!

Um abraço

José Leitão

7:18 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

Ó Jó
A maneira como nos levas a reviver a nossa infancia/juventude é ... nem sei como descrever...( nunca fui bom a Português/Filosofia )...no minimo fantastica;
Não pares :)))

Abraço
CHICO

11:56 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

As memórias habitam em si,como se as fosse buscar a um alfabeto novo,que todos soletramos,mas só as vezes descobrimos que existe tão real e tão belo.
Manuela Dias

2:43 da tarde  
Blogger Ernesto Costa disse...

Tó,

Ontem, domingo, senti uma vontade irresistível de ir ao Samambaia. Sabia que já não ia encontrar o dono, brasileiro de bigode farfalhudo, de seu nome Shôr Vitor, a dizer que não vendia mais amendoins a animais (leia-se nós!). Que lá não estavam o Lopes, o Vieira, o Casimiro para nos servir e aturar. Nem o Costa engraxador para nos azucrinar a cabeça (e vice-versa). Sabia isso tudo, mas tinha que ir. Medroso como sou, levei reforços: a minha irmã Belinha e a Candita (faltou-me a Titá!).

O que senti está cá dentro mas foi muito bom.

Falou-se de muita coisa, mas o nosso blogue é incontornável. Não pude fugir à referência que a minha irmã fez ao que tu agora relatas: por vezes fujo ao texto original. Não é de propósito, acredita. Muitas vezes não sou eu que escreve o texto. Ele escreve-se sozinho usurpando as minhas mãos.

Tudo o que tenho aqui escrito corresponde no entanto e no essencial à verdade, mesmo quando já impregnada pela deturpação da modernidade. Claro que uso alguma cola para dar alguma consistência ao texto (ninguém acreditará, espero bem, que tentei engatar uma cachopa a falar-lhe da Revolução Russa!).

Também sei que o melhor contador de estórias, o mais conhecedor, és tu. Por isso estranho que não venhas ao blogue dizer, já não digo metade, mas um centésimo do que sabes. Espero ansiosamente que contes, por exemplo, a nossa estadia na casa assombrada do avô do Almeida Pixa Curta, do outro lado da Pateira de Fermentelos e o que era preciso para ir ter ao outro lado ter com as namoradas (Oh Toxééé!! Siiiiiimm meu Senhor?). Como tu e o Dias me arranjaram namorada, a Cilinha, fiel abastecedora de rãs.

Conta!

Agora sobre o futebol de salão já tenho dúvidas de que tenhas razão. De que outras equipas falas? O que eu recordo é que joguei nos Fantomas (como eterno suplente, que entrava quando havia 10-0 e saía passados dois minutos já com 10-5) e que depois criei com os Metralhinhas uma grande equipa (eu, Novais mais novo, Ruca chato, Fausto Piu-Piu e TU NA BALIZA!).
Esclarece lá isso para eu compor as memórias.

Quanto ao mais só um eterno abraço amigo por todos os anos de solidária amizade e um desafio: porque não um encontro da trupe "Ferrão, Dias e Companhia"? Prometo não fazer estragos...

Jó-Jó

PS. Conta tudo. Mas só te peço para não contares aquela cena entre mim e o avô do Tomané Quaresma...

4:56 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Jó-Jó,
Só agora cheguei a casa e fui alertado pela Daisy, para ler o teu texto.
Quando ela me tentava resumir o que escreveste, a voz ficou embargada de comoção.
POR FAVOR, reune estes textos e faz um livro! Isto merece ser guardado para a posteridade.
Não tenho palavras!
Exprssão da Daisy: SUBLIME!
MUITOS PARABÉNS,
Alfredo

8:44 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Jó-Jó

Estás em grande forma.
És um bom e grande amigo para toda a vida.

Gosto das cores que utilizas para "pintares" os teus textos.

Eu, garanto-te, usaria as mesmas que tu, para dar colorido aos meus textos.

Apenas com uma pequena grande diferença.

Não tenho o teu "brilho" a escrever.
Continua companheiro. Escreve sempre e muito.

Cá em casa somos dois a ler-te religiosamente.
Em Aveiro tens a Daisy e o Alfredo.

PS - Podes "regar" um bocadinho porque eu já reduzi o tamanho dos orificios do regador.

Um abraço

saudações académicas

Tó Ferrão

9:08 da tarde  

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